O Catimbó-Jurema do Rio Grande do Norte e a Ordem do Lotus Negro
Atualizado: 13 de mar. de 2019
Introdução Nossos ancestrais ameríndios possuíam – como bem sabe todo aquele que sem preconceitos estuda as tradições dos povos antigos – conjuntos de mitos, cosmologias e ritos, nos quais estava depositada o que os povos Tupi à época da colonização chamavam Tuyabaé Kuaá, ou seja, a Ciência dos Antigos.
Centenas de etnias preenchiam o território brasileiro, cada uma lidando parcial ou integralmente com essa Ciência. Entre esses povos, mitos e cerimônias serviam de véu, veículos e chaves à abertura de energias e realidades espirituais universais que em essência estão presentes em todas as culturas do mundo.
O que hoje chamamos “Catimbó-Jurema” é uma Tradição de origem indígena característica do Nordeste brasileiro, cujas origens remontam às concepções espirituais e imaginárias de homens e mulheres de etnias que coexistiram há milhares de anos.
Analisando as “pistas” deixadas por pelos índios e sociedades pré-cabralinas que viveram no território do Nordeste do Brasil, encontramos elementos objetivos e subjetivos que desde eras remotas estão presentes nos cultos e tradições autóctones e que, mais à frente, durante a colonização, acabaram por ser misturados a outras concepções e crenças de povos adventícios.
De fato, no cotidiano de nossos ancestrais ameríndios, havia tipos de culto aos mortos ou crenças na vida após a morte – o que fica patente com elementos arqueológicos encontrados em vários pontos do Nordeste. Também era comum o uso ritualístico e mágico-medicinal de “plantas de poder” – conforme deixam claro pinturas rupestres, textos de cronistas e curiosos que aqui estiveram no período inicial da colonização e as atuais formas de Pajelança cabocla e indígena presentes em zonas urbanas e rurais de praticamente todos os estados; evocação e invocação de entidades espirituais, etc.
Esses elementos nativos foram acrescidos de outros, principalmente a partir da colonização, ou seja, do século XVI em diante, provenientes de povos europeus e africanos que no território brasileiro chegaram cada vez em maior número. Os europeus, colonizadores e catequistas, como era de se esperar, trataram as crenças e mitos indígenas como algo inferior e diabólico – do mesmo modo como tratavam o universo espiritual do africano escravizado. Nesse contexto, não demorou para que as práticas espirituais e mágico-medicinais de índios e negros fossem perseguidas e proibidas pelo colonizador.
À margem de proibições e perseguições se desenvolveu o Catimbó-Jurema – que podemos definir como uma religião (uma forma de religar o indivíduo ao Todo Universal) na qual são cultuadas a Natureza e seres espirituais a Ela intimamente ligados. Podemos, ainda, afirmar que o Catimbó-Jurema (também chamado “Jurema Sagrada”, “Jurema”, “Catimbó” e “Culto aos Senhores Mestres”), embora tenha origem indígena, é uma Tradição híbrida em que estão presentes elementos objetivos e subjetivos de origem européia (catolicismo popular, feitiçaria ibérica e cabala judaica) e africanos.
Em regiões como Pernambuco, devido à existência de um porto para o tráfico negreiro durante o período colonial, o contato entre índios e africanos foi muito mais intenso que o ocorrido no território do Rio Grande do Norte – região em que não existiu um porto para a chegada e venda de escravos africanos. No Rio Grande do Norte o contato principal ocorreu entre índios e brancos. Isto fez com que o Catimbó norte-rio-grandense desenvolvesse seu sincretismo mais em meio às pajelanças, ao catolicismo popular, aos elementos judaicos, a bruxaria e feitiçaria ibéricas, do que entre os sistemas de culto aos Orixás, Voduns e Inkices.
Mais um pouco de história...
Desde o século XVI, documentos escritos por colonizadores portugueses e holandeses, assim como narrativas deixadas por cronistas e viajantes que na região Nordeste estiveram, descrevem rituais mágico-religiosos encontrados entre populações indígenas. Em seus ritos e trabalhos diversos, índios, pajés e karaíbas, bebiam, fumavam, manipulavam ervas, invocavam e evocavam entidades espirituais.
Um desses escritos descreve a chamada “Santidade do Jaguaripe” ocorrida no sertão baiano por volta de 1583, caracterizada por historiadores e antropólogos contemporâneos como um processo sincrético de religiosidade nascido do encontro entre missionários católicos e indígenas, que revela relações de dominação-subordinação ocorridas entre nativos e portugueses. O culto aos maracás da Santidade, por exemplo, reproduz a crença de que os maracás abrigavam espíritos cultuados e chamados através de cantos, danças e do uso de Tabaco. Essas formas de “santidade” são apresentadas simbolicamente como expressões de resistência da população indígena contra a colonização portuguesa. Nelas o “espírito da santidade” tomava conta de índios e de alguns portugueses que participavam do movimento.
Um outro documento menciona o falecimento na prisão, em 1758, de um índio da aldeia de Mopebu (atual município de São José do Mipibu), no Rio Grande do Norte, preso por ter feito “adjunto de jurema” – cerimônia coletiva com fins religiosos e terapêuticos, em que dançavam, fumavam cachimbo e bebiam jurema. Em 1816, o viajante inglês Henry Koster observou uma dessas cerimônias realizadas nos arredores de Olinda e descreveu que havia um grande vaso de barro no centro da cabana em torno do qual dançavam homens e mulheres e o cachimbo era passado entre os participantes.
A prática da Jurema nordestina, pelo visto, é parte de um longo processo de transformação e assimilações culturais ocorrido na região, sendo encontrado em comunidades indígenas e no interior de diferentes religiões afro-brasileiras, como o Candomblé, o Xangô pernambucano e a Umbanda.
A Jurema é composta por um complexo de concepções e representações que gravitam em torno de um conjunto de plantas que carregam o nome “Jurema” (Jurema Branca, Jurema Preta, Juremas Roxa e Vermelha, Jurema Unha de Gato, etc.) e têm como principal característica o culto a Mestres e Caboclos (seres espirituais, falecidos ou encantados) que acreditamos ser provenientes de um Universo espiritual intimamente ligado a esses vegetais – entidades cujos trabalhos que realizam são principalmente a cura de doentes e a resolução de problemas práticos da vida cotidiana (infortúnios amorosos e profissionais, desmanche de feitiços, dentre outros).
Como ressalta Roger Bastide, nos trabalhos da Jurema o que conta “são os desejos ou as necessidades individuais, é a vida cotidiana com suas doenças, seus romances de amor, seus ganhos, suas tristezas e seus sonhos de um futuro melhor”. Esse complexo ritualístico inclui ainda a bebida preparada com a casca da Jurema e o uso da fumaça dos cachimbos.
O culto tem por base um sistema mitológico no qual a Jurema é considerada árvore sagrada e, em torno dela, dispõe-se o “reino dos encantados”, formado por cidades e aldeias que são habitadas pelas entidades espirituais. Uma outra explicação mitológica apresenta uma visão cristã quanto às origens do culto ao afirmar que, antes do nascimento de Jesus Cristo, a jurema era tida como árvore comum, mas, quando a Virgem Maria, fugindo das perseguições de Herodes, no seu êxodo para o Egito, escondeu o menino Jesus num pé de jurema – o que fez com que soldados romanos não o vissem – imediatamente a árvore encheu-se de poderes sagrados, justificando, assim, que a força da jurema não é material, mas espiritual.
Mestres e Caboclos são as entidades espirituais centrais na Jurema nordestina (ao lado das quais podem se manifestar espíritos de negros, ciganos, padres, freiras e animais sagrados, também chamados “Mestres” ou “Caboclos”). Os Mestres geralmente são juremeiros falecidos ou sres humanos encantados (homens e mulheres que ingressaram no mundo espiritual sem sofrerem a experiência de morte) que, quando encarnados dominaram a Ciência de lidar com a Jurema e os seres que nela habitam. Há, entretanto, Mestres que jamais encarnaram no ciclo de evolução hominal.
Segundo Mário de Andrade, no século XVII, em Portugal, feiticeiros e curandeiros eram chamados “mestres”. Outras fontes mostram que o suposto diabo que dirigia as cerimônias do Sabat das bruxas, também recebia esse título, assim como médicos e todo aquele responsável por um grupo ligado a alguma forma de “ciência oculta”.
Atualmente, nas cerimônias de Jurema, também se denomina “mestre” o dirigente de uma sessão que possui um centro, casa ou terreiro, tenha ou não discípulos (embora esse título venha sendo substituído por expressões da Umbanda e Candomblé, como “babalorixá” e “yalorixá”). Os mestres vivos incorporam os Mestres mortos ou encantados que habitam as cidades sagradas da Jurema, ligando esses dois mundos por meio do transe mediúnico ou estado alterado de consciência. Sem querer ser redundante, vale salientar que os Mestres seriam espíritos curadores que, em vida, conheceram os segredos das plantas sagradas e que, principalmente por esse motivo, são convocados para trabalhar em uma sessão, a fim de aliviar os sofrimentos humanos. Cada um tem uma “linha”, “canto”, “toada” ou “chamada”, entoada pelo dirigente da sessão ou pela própria entidade, quando manifesta sua visita à Terra. O canto é uníssono, geralmente acompanhado pelo maracá e resume a ação sobrenatural, as excelências de seu poder e sua especialidade técnica. Com fisionomia própria, gestos, voz, manias, predileções, cada Mestre narra as suas aventuras, diz o seu nome e conta detalhes de sua vida. Um mestre vivo, uma vez tendo se aproximado do nível de um Mestre espiritual, ganha dos Mestres a semente – o sinal de sua legitimidade e autenticidade, eficácia e poder sobrenatural.
São muitas as entidades espirituais cultuadas no Universo da Jurema. Dentre elas os mais antigos são chamados Reis e Rainhas, Príncipes e Princesas, como Rei Kanindé, Manicoré, Rei Salomão, Mestre Carlos e dona Benedita; o padrinho dos catimbozeiros e Rei das Tribos, Mestre Zé Pelintra (não confundir com o Zé Pelintra Malandro do Rio de Janejro), Mestre Manoel Cadete, Mestra Faustina, Mestre Manoel Germano, Mestra Luziara, Mestra Maria do Acais, Mestre Malunguinho, Florzinha da Mata, Mestre Pilão Deitado, Negro Gerson, Cabocla Jurema, Caboclinho da Jurema, Caboclo Pedra Preta, Índio Pena Branca, Japiassu, dentre muitos outros e outras.
Podemos dizer que, devido ao processo histórico de dissociação e reagrupamento de tribos e nações indígenas no Nordeste brasileiro, assim como pelo mútuo relacionamento ocorrido entre índios, europeus e africanos, as diversas formas de Culto à Jurema continuam vivenciando reelaborações e adquirindo outros elementos simbólicos, como na fase atual de umbandização da Tradição (no Rio Grande do Norte a Umbanda passou a interagir mais vivamente com o Catimbó-Jurema a partir da década de 1940) – o que significa, nessa dinâmica, sua permanência enquanto expressão de grupos sociais subalternos e historicamente marginalizados. Mais que isso, no plano ritualístico representa formas de resistência aos modelos de opressão socioeconômica, contribuindo em última instância para a manutenção de um referencial étnico e identitário, sejam nas comunidades indígenas ou dentro das religiões afro-brasileiras.
Em linhas gerais, a Jurema é uma Tradição indígena com fortes elementos europeus e africanos – o que nos faz afirmar que o Catimbó é uma das mais antigas manifestações espirituais do território brasileiro. É, portanto, religião, culto e magia indígena-euro-africana.
Nossa Família de Jurema
Há pouco mais de dez anos, venho me esforçando para resgatar e preservar os fundamentos histórico-espirituais dos cultos à Jurema nascidos no território do estado do Rio Grande do Norte. Nas “famílias de Jurema” (espécies de clãs juremeiros que se desenvolveram em torno do trabalho de um ou mais Mestres-Caboclos), encontramos:
- A prática de invocar e evocar a Força ou a presença de determinadas entidades espirituais e, consequentemente, o contato com seres que habitam o “Encanto” (outro nome utilizado para o conjunto de Reinos, Cidades e Aldeias da Jurema);
- A comunhão de bebidas sagradas produzidas à base de determinadas plantas (como o Vajucá, o Catucá, o Manacá, dentre outras) e principalmente com os vegetais do grupo “Jurema” – bebidas que podem ser produzidas com vinho, cachaça ou apenas água;
- O uso cerimonial e ritualístico da fumaça de Tabaco com fins terapêuticos e defensivos, além da produção de banhos, chás, lambedores e defumadores vegetais, utilizados de modo semelhante;
- Uma cosmologia composta por Reis e Rainhas, Príncipes e Princesas que dirigem os Reinos espirituais (a Jurema norte-rio-grandense não possui, com o mesmo destaque que se da na Umbanda e no Candomblé, Orixás africanos; a presença de Orixás entre o povo juremeiro do citado estado se deu em período consideravelmente recente, provavelmente durante a expansão da Umbanda).
- A inexistência de sacrifícios animais e cortes durante o processo de Iniciação de neófitos – processo esse que varia de casa para casa, podendo se estender por vários meses ou anos, ou ocorrer em pouco tempo, após o “beber Jurema”, ou ainda espontaneamente.
Existem outras características que não cabem neste curto ensaio.
O Catimbó-Jurema presente nos trabalhos internos da O.L.N.
Ele encontra suas origens principalmente, nas famílias juremeiras de Canguaretama (município do litoral norte-rio-grandense, originalmente formado por índios Potiguara e Tarairiú, unidos a uns poucos negros que fugiam da escravidão dos canaviais, nos quais eram martirizados junto a esses mesmos indígenas).
Se nos detivermos a elaborar uma “árvore genealógica” de nossa Jurema, iremos encontrar como ancestrais os Mestres: José Tavares, Raimundo Tavares (que possuiu centro em uma pequena comunidade cabocla intitulada Jacaraú, em São Gonçalo do Amarante) e a Mestra Maria Fernandes (dirigente do Centro Caboclo Zé Pelintra e Caboclo Tanema, que existiu anos atrás em Canguaretama). Maria Fernandes transmitiu e ainda transmite seus conhecimentos ao jovem mestre Rômulo Angélico, dirigente do Centro Cultural e Espiritualista Casa Sol Nascente do Rei Malunguinho (localizado entre Macaíba e Parnamirim) e que, por sua vez, foi responsável pela introdução de Kamila Meireles no Culto da Jurema Sagrada.
Além dessa linhagem de Mestres e Mestras, outros que contribuíram com a formação de nosso Catimbó, foram: Mestra Neta, responsável pelo Centro Mestre Pena Branca e Estrela do Mar, oriunda de uma família consanguínea de juremeiros que remontam aos caboclos de Canguaretama; dona Geralda, última juremeira viva da aldeia Katu dos Eleutérios (localizada entre os municípios de Canguaretama e Goianinha), que adquiriu sua Ciência nas mesas de Jurema realizadas pelo Mestre Pedro Palhano e nos rituais nas florestas guiados pelo caboclo Francisco Eleutério; a Yalorixá Neta, dirigente Terreiro de Umbanda Ogum-Odé (localizado em Natal); e os mestres Manoel Daniel e Zélia Maria (Terreiro Tupinambá, em Canguaretama). Além desses grandes professores, podemos citar: dona Liu e sua família (dirigente do Centro Espírita de Umbanda Caboclo Rompe Mato), dona Antônia da Jurema, Mestra Maria Maravilhosa, Severina Cutia e alguns outros canguaretamenses que tanto contribuíram e ainda contribuem com nosso trabalho.
O pesquisador Aucides Sales afirma que Canguaretama foi outrora o lugar que mais concentrou “feiticeiros”, no Rio Grande do Norte. De fato, naquele município constatei a existência de quarenta e quatro centros de Jurema, fora as casas de juremeiros que não contabilizei, existentes em áreas rurais de difícil acesso. Constatei, até o início de 2011, a existência de pouco mais de vinte igrejas protestantes e pouquíssimas igrejas católicas; um único centro kardecista e nenhum terreiro de Candomblé (embora os Orixás não deixem de ser cultuados em maior ou menor grau por muitos casas de Jurema, de modo distinto ao realizado nos cultos de Nação).
Eis o nosso Catimbó, eis nossa amada Tradição. As pesquisas e os trabalhos de resgate e preservação continuam.